museu de arte popular

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Evitar a Morte do Museu de Arte Popular

O artigo de opinião que João Leal (JL) e Raquel Henriques da Silva (RHS) publicaram em O Público (Março de 2008) sobre o fim anunciado do Museu de Arte Popular (MAP), fala de um museu mal amado. A expressão não podia ser mais apropriada e merece alguma reflexão. A decisão da ex-ministra da Cultura foi o culminar de um processo de negligência e abandono que durava há décadas. E não apenas, como alguns fazem crer, pelo facto do edifício do museu não ter sofrido obras de beneficiação durante largos anos. Os contornos desse abandono são também de ordem museológica e científica: mostrar um museu inaugurado em 1948 pelo SNI (órgão da propaganda do Estado Novo), sem qualquer tipo de contextualização das ideias que presidiram à sua formação, como se o mesmo tivesse acabado de ser concebido, transformou o MAP num lugar algo fantasmagórico.

O museu atraía menos visitantes do que se desejava? É óbvio que sim. Só alguns iniciados, com informação suficiente para reportá-lo à política de uma certa época podia usufruir plenamente do mesmo. A falta de dinâmica transformou-se, pois, numa postura profundamente elitista, deixando a maior parte das pessoas que ali entravam à sua sorte, desprovidas de qualquer ferramenta que as levasse a perceber o que estavam a ver. Poderiam apreciar as peças expostas mas nada lhes dizia o que quer que fosse sobre o que se pretendia mostrar nos anos 40 através daqueles artefactos, nem porque é que eram aquelas objectos e não outros que surgiam em exposição. Porque o que ali estava não era só arte popular e artesanato. Era uma certa visão dos mesmos.

Tal visão não era, contudo, um mero epifenómeno do salazarismo (transcendendo aliás em muito a ideologia do regime); era fruto de um conjunto de circunstâncias históricas que tinham a ver com os percursos da etnografia, não só em Portugal, mas também no resto da Europa (veja-se o livro Etnografias Portuguesas de João Leal); relacionava-se com a construção da imagem dócil do país e do povo subjacente ao projecto de afirmação de Portugal entre os portugueses e face ao mundo que guiava toda a campanha folclorista de António Ferro; tinha, como pano de fundo, uma política de gosto virada para as classes médias da época, estando por isso associada a uma fase determinante das artes decorativas no nosso país; constituía-se como alternativa à celebração da nação apenas através da história. Neste sentido o espaço do museu – a arquitectura do edifício, o seu arranjo decorativo e disposição das peças, as pinturas murais dos pintores modernistas – é essencial para perceber a colecção de objectos que albergava.

Em vez de matar o museu, é de facto altura de, como propõem JL e RHS, musealizá-lo. As possibilidades de exposições temporárias que explorem diferentes dimensões das práticas e representações ligadas ao museu são infindas. Poder-se-á, assim, transformar o Museu de Arte Popular num museu actual, que interesse não apenas aos que procuram apreciar e compreender a arte popular (e sobre este aspecto muito há a dizer), mas também aos que desejam entender a história contemporânea de Portugal. Com arquivos e bibliotecas convenientemente tratados e as colecções estudadas, poderá ser também um excelente local para estudo e investigação. Acabar com ele obedece à mesma lógica subjacente ao abandono dos arquivos históricos durante décadas em armazéns infectos; ao desinvestimento na Biblioteca Nacional; à (não) política de património que deixa emparedar as moradias modernistas construídas nos anos 30 e 40 -- percorra-se as ruas do Estoril que não se vêm a partir da Marginal, para verificá-lo (algumas, aliás, da autoria de Jorge Segurado, o mesmo arquitecto que concebeu o projecto de transformação dos pavilhões da Exposição do Mundo Português no MAP). Aposte-se, pois, na requalificação do MAP e evite-se a sua morte arbitrária.

Vera Marques Alves

Vera Marques Alves, antropóloga, é autora de «Camponeses estetas» no Estado Novo: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional, Dissertação de Doutoramento, ISCTE Departamento de Antropologia, Lisboa, 2007

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