No último fim de semana, esquecendo as misérias e humilhações orçamentais de todo o ano, fez-se festa nos museus. Noite fora, abriram-se as portas e mostraram-se colecções, bebeu-se e dançou-se. Ainda bem. Todavia, o museu que eu mais queria visitar ficou fechado. Nesse dia e em todos aqueles que se seguirão, ele nunca mais voltará a abrir. Morreu por ordem de uma pessoa, uma só pessoa, hoje por triste acaso do destino ministra, amanhã certamente sem história. Refiro-me, obviamente, ao Museu de Arte Popular, em Belém, cujo encerramento a temporária excelência justificou com a inesquecível frase “os museus nascem, vivem e morrem”. Paz à sua alma.
No MAP guardava-se aquela que é sem grandes dúvidas a melhor colecção de artesanato português recolhida entre as décadas de 40 e 50, numa época que correspondeu a uma fase de ouro do trabalho artesanal português. Que essa colecção estivesse visível, pudesse ser estudada e apreciada, interessava a alguns – aos artesãos deste país por exemplo, que ainda os há imagine-se, e tão poucas referências históricas têm das mãos que trabalharam antes de si; a artistas que redescobrem hoje esse património para sobre ele trabalharem em múltiplos sentidos; a designers cujos caminhos mais recentes e internacionais têm levado à colaboração com o saber dos artesãos; a turistas até que apreciam essas excentricidades populares como tão bem sabem todas as lojas pelo país fora que disso facturam, quase sempre sob formas rafeiras e rasteiras; e até a portugueses destes dias que guardam consigo a memória sentimental de um passado menos urbano. Pois agora, amigos, caso queiram vislumbrar qualquer coisita, é pedir ao Museu de Etnologia que autorize uma olhadela às reservas, entre plumagens amazónicas e máscaras africanas e sorte a vossa.
O MAP era porém muito mais do que uma mera colecção de arte popular e essa foi a sua maldição. Este museu, desenhado por Jorge Segurado e decorado por artistas como Botelho, Tom ou Paulo Ferreira, era testemunho também de uma visão de Portugal, a de um regime certamente, que sobre a nacionalidade muito fantasiou e doutrinou. Lá estão guardados, por exemplo, os protótipos da versão reiventada de um galo de Barcelos, tornado então ícone português e que tão alegremente continuamos a adoptar, sem nos lembrarmos da origem. Tal como o galo, a imagem de Portugal que então foi construida deixou resquícios, com consequências interessantíssimas de analisar aliás. O MAP era uma das mais preciosas e insubstituíveis peças de estudo sobre a “política do espírito” do regime, onde coube também a invenção primitiva da imagem de um país, tão fascinante de perceber nesta era triunfante do marketing. Mas como sempre, e sobre isso estamos conversados, tudo o que incomoda uma certa geração neste país guarda-se na gaveta ou, no caso em causa, degola-se com orgulho, arrogância e desprezo pela curiosidade, inteligência e espírito crítico das gerações que se seguem.
Assim sendo, esconda-se a colecção, entapumem-se os murais e venha então a cópia do Museu da Língua de São Paulo. E vivam os plasmas, essas maravilhas que encantam a gente deste regime.
Crónica de Catarina Portas, Público 26 Maio 2007
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