museu de arte popular

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Depoimento de Marta Mestre

1. NA MODERNIDADE ENTROU-SE POR VÁRIAS PORTAS

“Entre Belém e o Chiado”, a recorrente frase da História da Arte em Portugal para o ano de 1940, encontra uma renovada expressão no presente debate sobre o futuro do MAP (a sua defesa é dado assente). Neste ano, se em Belém nascia o Pavilhão da Vida Popular (que daria origem ao MAP) no interior do aparato propagandístico do Estado Novo, por seu turno, no Chiado, António Pedro, António Dacosta e Pamela Boden expunham trabalhos surrealistas, influenciados pelo manifesto de André Breton.

A topologia distinta, entre Belém e o Chiado, configura duas estéticas, éticas (e politicas) da mesma modernidade: o interesse pelas artes populares por um lado, e o inconsciente por outro (e os seus correlativos campos do sonho, da desrazão, da actividade artística dos marginais, loucos, crianças e homem comum). Outros campos, como por exemplo, o interesse pela arte primitiva foram igualmente aspectos da mesma construção do moderno, aquilo a que Karl Krauss chamou os “grandes tempos”.

É neste sentido que as artes populares configuram um território vasto, plural e multiforme, que só parcialmente poderá equivaler à construção da cultura popular portuguesa que fizeram a Etnografia por um lado, e as campanhas de António Ferro por outro.

Carece de investigação concertada, mas vindo o MAP a assumir-se, entre outras vertentes, enquanto centro de pesquisa, linhas de estudo como 1) a apropriação de objectos indígenas pelos surrealistas; 2) os desenhos humoristas (de Emmerico Nunes a João Abel Manta); 3) os cadernos de viagem de etnógrafos (agradece-se a Vítor Silva que me chamou a atenção para os desenhos de Fernando Galhano); 4) as exposições de arte negra (como a que organiza Ernesto de Sousa com a colaboração de Diogo de Macedo, na Escola Superior Colonial em 1946, na qual se apresenta estatuária do Benim, Amadeo e Almada, e reproduções (!) de Matisse e Picasso); 5) a obra “autoral” de Franklim, Rosa Ramalho, Mistério, e a história do seu “achamento”; 6) Jaime Fernandes e os “outsiders” contemporâneos; 7) a política da “arte ingénua” de Ernesto de Sousa; 8) a estética “do-it-yourself art” (DIY), etc. permitirão perspectivar criticamente um “campo expandido” do popular.

2. JOSÉ DOS SANTOS (1904-1996)



“Os Portugueses são os maiores escultores do mundo e eu sou o maior escultor de Portugal”, definia assim José dos Santos (1904-1996) as suas qualidades e a supremacia dos escultores portugueses, ele, que andou sete dias à escola e não consta ter saído da aldeia de Arega, perto de Leiria. A notícia deste artista “outsider” e do seu espólio de 250 obras que se encontra em Sydney, chega-nos em boa hora através do Professor Colin Rhodes, (autor da principal bibliografia sobre arte “outsider” e investigador em primitivismo e modernismo). Rhodes situa o trabalho de José dos Santos “undoubtedly (...) in the first rank of self-taught and outsider sculptors” (a fortuna crítica deste artista está, alias, disponível somente em inglês). Actualmente, o trabalho idiossincrático de José dos Santos pode ser visto na exposição “The Greatest Sculptor in the World, José dos Santos: Artist, Visionary, Outsider”, promovida pela Universidade de Sidney - Self-Taught and Outsider Art Research Collection (SCA), onde tem estado conservado em permanência, desde que saiu de Portugal.

O caso de Jaime Fernandes é semelhante. Posteriormente à exposição realizada em 1980 na Fundação Calouste Gulbenkian (de que existe um pequeno catálogo com textos do psicanalista João dos Santos, e de Fernando de Azevedo) e do esplendoroso “Jaime” de António Reis (1974), é preciso ir a Lausanne para ver “jaimes”, na abcd collection.

Em ambos os casos, a confirmação da artisticidade faz-se no exterior do país e das suas instancias de legitimação individuais ou colectivas, possibilitando que estas imagens integrem regimes estéticos que pouco ou nada terão a ver com o genuíno português. Ainda bem.
A invisibilidade destes artistas testemunha “a tremenda dificuldade que temos em misturar culturas que nos habituamos a ver separadas”, aspecto que explicitei no artigo “We are strangers to ourselves”.

Como foi referido no debate de dia 20 pelo Arq. Nuno Portas e pela Professora Raquel H. da Silva, a época actual (tal como o modernismo) presta-se a hibridismos. Neste caso, avance-se e “infecte-se” de novo.



3. UM MUSEU QUE INTEGRE A CONFLITUALIDADE DO SEU OBJECTO

A mobilização que o movimento de cidadãos em defesa do MAP tem gerado é crescente e articula diversos grupos (académicos, simpatizantes, curiosos, profissionais, estudantes, etc). A principal medida deste movimento, ou seja, a interrupção da vontade do Ministro em construir o Museu Mar da Língua no lugar do MAP poderá (esta é uma das nossas propostas) articular-se com propostas museológicas/ culturais para o seu destino (desde o “museu critico” do Arq. Nuno Portas, ao “meta-museu” proposto pelo Professor João Leal). Nesta hora, pense-se o futuro do MAP, como forma de salvaguarda do presente. Uma das formas desta acção passa pela constituição de um “grupo prévio instalador” que trabalhe em propostas reais (neste caso poderíamos estar em face de um futuro caso de sucesso da museologia e da politica cultural portuguesa). A vantagem mais directa desta acção será a interpelação de um maior número de apoiantes (principalmente as gerações mais novas, recém-formadas) face a conteúdos programáticos que prevêem um horizonte de execução. Outra medida essencial passa por alargar a discussão a “outros que sabem sobre” fora de Portugal, nomeadamente, profissionais de projectos museológicos congéneres desde a Finlândia aos EUA (American Folk Art Museum, Union of Rural Education and Culture), projectos editoriais, fundos comunitários europeus de financiamento (Equal Rights to Creativity - Contemporary Folk Art in Europe), investigadores, etc.

Contrariamente àquilo que foi a sua história, o futuro do MAP não é apenas matéria de antropólogos e etnógrafos. A hibridez do conceito “arte popular” mobiliza muitas outras disciplinas (desde a história da arte ao design, desde a música à estética) para além de ser assunto de não-profissionais. O MAP será um projecto sucedido se integrar a conflitualidade do seu objecto (presente à nascença, na oposição estética versus etnográfica entre A. Ferro e a equipa de etnógrafos liderada por Francisco Lage, conteúdos da investigação da Antropóloga Vera Marques Alves). É precisamente o actual debate sobre o futuro do MAP que pode veicular o percurso interrogativo do seu objecto

Marta Mestre, Historiadora de Arte / curadora
Doutoranda em cultura contemporânea - FCSH (Lisboa) / EHESS (Paris)

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