... ou a raiva serôdia sobre o Museu de Arte Popular
(...)Ainda que a ditadura salazarista e o seu estertor marcelista possam servir de caução às perversidades que hoje impunemente se assistem no nosso regime democrático, Portugal existiu antes do 25 de Abril de 1974 e, ao contrário do que determinam os manuais escolares, o nosso País não foi só uma revista do Parque Mayer dedicada a Fátima, ao futebol e ao fado, ou mesmo somente um quotidiano de pides a perseguir revolucionários. Portugal também existiu para além da guerra colonial e da emigração em massa. Existiam jovens, existia criatividade e, apesar das dificuldades e do risco, havia confronto de ideias. Em particular, durante a Segunda Grande Guerra, o nosso País viveu um período artístico marcante e de expressão internacional. Não isento de críticas e contradições, é certo. Com injustiças e perseguições, também não é menos verdadeiro, mas, ao contrário de hoje, com uma intensa produção artística e cultural apoiada pelo Estado. Mesmo agora não é possível compreender o modernismo em Portugal, o surgimento de correntes de ruptura e de inovação artística que se rebelaram contra os padrões hegemónicos da estética da ditadura se não conhecermos a produção artística e cultural do “Estado Novo”, se não conhecermos as suas escolas, os seus mestres e, sobretudo, as suas obras.
Vem esta reflexão a propósito da resolução serôdia do Conselho de Ministros, do passado dia 7 de Maio, de querer reconverter o Museu de Arte Popular, em Lisboa, em Belém junto ao Padrão dos Descobrimentos, no denominado Museu da Língua. Insurgimo-nos não contra esta iniciativa - venha daí o museu da nossa tão maltratada Língua! – mas sim contra essa absurda decisão de separar o espólio dedicado às artes e ofícios portuguesas do edifício que lhe foi especialmente dedicado, o único que restou, da célebre do da Exposição do Mundo Português de 1940. Para lá do testemunho arquitectónico de uma época e de uma tipologia de conceitos artísticos que nos ajudam a compreender a História, o edifício desde que foi encerrado em 2004 conserva ainda no seu interior um conjunto vasto de pinturas murais de Thomaz de Melo (Tom) e de vários outros artistas plásticos que coordenou, como Carlos Botelho, Eduardo Anahory, Estrela Faria, Paulo Ferreira e os escultores Barata Feyo e Henrique Moreira.
Voluntária, ou talvez não, com esta atitude o governo da república impõe através dos terrenos da museologia uma outra “nova” Política do Espírito condenável a todos os títulos, não só porque se trata de uma grosseira tentativa de querer reescrever a História, ao dar o triste exemplo aos cidadãos da desqualificação e abandono de uma parte do rico património cultural e artístico português e do apagamento de um modelo de memória vernacular e rural, mas, sobretudo, pela antinomia arrogante de querer impor aos vindouros que Portugal não existiu numa boa parte do século XX.
Artigo de Miguel Bandeira, Professor na Universidade do Minho, publicado no Jornal da Associação Académica da Universidade do Minho (20 de Maio de 2009). Ler na íntegra.
Pintura mural (certamente) de Eduardo Anahory (sala de Trás-os-Montes).
0 comentários:
Enviar um comentário