Tenho acompanhado com alguma distância o processo relativo ao Museu de Arte Popular com uma (ingénua?) esperança de que alguém de entre as esferas do "poder" tivesse finalmente senso e, melhor que isso, fizesse os seus pares terem-no também. Parece que era, de facto, uma esperança insensata. Este processo surge ao olhos do menos avisado ou do menos atento dos cidadãos como um conjunto imenso de despropósitos, de decisões incoerentes, de manobras de gabinete pouco claras ou pouco explicadas... aos olhos do mais atento começa a ser absolutamente impossível continuar a tentar acreditar na boa-fé e na valia das decisões que nos vão sendo dadas a conhecer. Por isso me permito enviar este e.mail, suportando a causa de tentar impedir a destruição daquela unidade museológica.O Museu de Arte Popular foi um dos meus objectos de estudo aquando da tese e doutoramento que realizei na Universidade de Leicester, sob o título "Museums and Temporary Exhibitions as Means of Propaganda: the Portuguese case during the Estado Novo" [http://www2.ufp.pt/~slira/phdintro.htm]. A decisão de usar o Museu de Arte Popular como um dos casos em análise foi talvez das mais fáceis, no processo de escolha dos casos para esse trabalho. De facto, o Museu de Arte Popular herdava directamente o espólio material e simbólico do Pavilhão da Vida Popular e era, por isso, de superior interesse em termos de análise. Acresce que a sua manutenção num estado de imobilismo quase total ao longo de mais de meio século o transformava num delicioso (perdoe-se a expressão) objecto de estudo. Além disso, a relação umbilical do Museu de Arte Popular com o SNI apontavam-no como um dos pólos excepcionais de estudo da propaganda ideológica do Estado Novo. Outro fenómeno então observado, e que me pareceu relevante, prende-se com o número de visitantes que esta unidade museológica recebia: nos anos 1960 este museu registou números anuais de visitantes portugueses entre os mais de 10.000 e picos de quase 30.000; os totais, contando com visitantes estrangeiros, atingiam 35.000 a 40.000. Interessante de observar que em 1974 o número total de visitantes nacionais foi de cerca de 45.000, tendo o total absoluto ultrapassado os 70.000. Mais interessante ainda será verificar que 77% dos visitantes deste ano revolucionário se concentraram em Maio e que uma esmagadora maioria destas vistas (ao contrário dos anos anteriores) foi grátis. Ou seja, sem argumentar e sem concluir, no ano da revolução, no mês seguinte à revolução, o povo visitou como nunca um dos baluartes da propaganda do Estado Novo. Interessante, no mínimo. Irritante, talvez.A zona urbana em que o Museu se encontra é outro dos aspectos que, julgo, merece alguma atenção: zona degradada aquando da decisão de lançar a grande exposição de 1940, passou a área privilegiada e de impacto propagandístico desde então. Não terá certamente sido por acaso (ou estarei a ver "no escuro"...) que o CCB foi edificado na exacta localização dos Pavilhões dos "Portugueses no Mundo" (E se mais mundo houvera lá chegara) e "Portugal 1940" onde o Estado Novo realizou a elegia da cultura dita da portugalidade (O nome destes e doutros tornou maior o nome de Portugal) e das suas próprias realizações, numa intoxicante campanha de insuflação das realizações financeiras dos anos 1930. Neste, eventualmente mais que em qualquer outro pavilhão, o regime pretendia apresentar-se na sua máxima potência de propaganda, da fachada ao miolo. Actualmente o CCB ocupa esse espaço. Logo por detrás estavam as "aldeias portuguesas" (que faziam o contraponto do Jardim Colonial, onde os nativos coloniais e os nativos da "província" se mostravam aos visitantes citadinos) e a passagem para o Pavilhão de Arte Popular, que culminava, na exibição da cultura material, o elogio da portugalidade original. Actualmente, do CCB pode avistar-se o Museu de Arte Popular... mas, e julgo que me perdoarão a ironia, que visão desalentada! aquela mole de pedra, qual templo "grego" coevo de um período em que uma certa "mania das grandezas" parecia encher de vento alguns peitos nacionais... fica tão mal acompanhado pelo miúdo, amesquinhado e memorial-de-outros-tempos Museu de Arte Popular; não rimam, não lhe fica nada bem. Parece perceber-se que a usurpação realizada pelo CCB do espaço urbano dignificado (ao menos em memória subliminar) pela acção de 1940 não ficará completa sem que se arrase definitivamente com o resto da memória (essa arquitectónica e física) incómoda que é o Museu. Mas isto é puro exercício interpretativo, quem sabe desprovido de qualquer razão.O que não é interpretação, o que é facto puro e duro, é que o Museu de Arte Popular é um elemento essencial da memória museológica; é que as suas colecções tem valências intrínsecas e epocais de valor indubitável em termos museológicos e históricos; é que a sua destruição é uma perda irreparável. Compreendo que haja interesses em fazer desaparecer esse Museu, ganhando o seu espaço, permitindo outros projectos. Mas a coincidência desses dois desígnios é que me parece incompatível com a ética republicana que adoptámos há 35 anos; a estranha obsessão por aquele "lugar" é que me parece perigosamente próxima da forma de actuar de 1940... se sim, então a propaganda ideológica do Estado Novo, ali tão visível, ficou-nos (aos nossos governantes) mesmo debaixo da pele, foi mesmo (demasiadamente) eficaz!!!
Mário Novais [1947]. Fotografias da Biblioteca de Arte da FCG.
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