museu de arte popular

Avatarfechado em Belém mas aberto aqui

Poder, Património e Memória

Quando iniciei o meu estudo sobre o Museu de Arte Popular [MAP], no âmbito do mestrado em museologia que realizei na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, sob o título “Museu de Arte Popular: Memórias de Poder”, em 2006, o Museu tinha visto abater sobre si uma decisão de encerramento pela então Ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, assumida no Jornal de Notícias de 31 de Outubro de 2006, como “uma opção da Política Cultural do Ministério”, de acordo com as palavras da própria. Assinalando o culminar de uma tendência de afastamento e desestruturação funcional por parte das sucessivas tutelas, promovida nos 30 anos anteriores, centrei parte desse projecto de investigação na dialéctica que caracterizou a essência do Museu ao longo das suas quase seis décadas de vida e que, em última análise, se manifestara mais uma vez na decisão assumida: A relação entre Poder, Património e Memória nos espaços museológicos, e neste caso concreto no Museu de Arte Popular.

Perspectivar um entendimento sobre o relacionamento estabelecido entre o MAP e o poder político, desde o momento da sua abertura, em 1948, e 2006, remete-nos para a existência de dois períodos distintos em termos de dinâmica e aceitação.
O primeiro período entre 1948 e 1974 assinala os anos de referência do Museu no panorama museológico nacional. Fundado por António Ferro como sendo uma síntese da arte moderna portuguesa, cuja linha orientadora oficial houvera sido veiculada pelo Secretariado de Propaganda Nacional [SPN] desde 1933, para além do número elevado de visitantes que registava – inserindo-se no roteiro turístico da cidade de Lisboa –, surge associado a alguns dos principais eventos propagandísticos de exaltação do Estado Novo e do seu discurso oficial: Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D.Henrique; Comemorações do 40º Aniversário da Revolução Nacional; Exposições Nacionais de Arte Moderna; Mostras de Arte Popular de países estrangeiros.

A proximidade e reprodução do sentido político e cultural do Estado Novo eram evidentes nesse período, pela dependência do Museu do SPN-SNI (Secretariado Nacional da Informação) a partir de 1945 até 1969 –, assumindo em 1962 a Conservadora do Museu Maria Madalena Cagigal e Silva, no âmbito da 3ª reunião dos Conservadores dos Museu, Palácios e Monumentos Nacionais, que “(...) os museus de arte popular têm funções de preservação e recolha de obras folclóricas, têm missão cultural, científica e artística, e de propaganda”

O período seguinte, iniciado com a democracia em 1974, marca uma inversão na visibilidade e tendência registadas até então, preenchendo três décadas com sucessivos episódios de hostilização e turbulência institucional.

Encerrado entre 1974 e 1980 devido à não nomeação de um director, depois da aposentadoria de Manuel de Mello Corrêa, e de um arrastado período de obras no edifício, após a reabertura em 1980, o MAP viu-se privado do seu espaço de exposições temporárias, inaugurado em 1966, ficando reduzido à sua exposição permanente até 1995, altura em que foi novamente criado no Museu um espaço para o efeito.

No período que medeia entre essas duas datas, foram extintos os serviços educativos surgidos no ano de 1984, e por indicação do director do antigo Instituto Português do Património Cultural, António Garcia Lamas, foi dada ordem de encerramento do Museu em 1989 e subsequente transferência do acervo para o Museu Nacional de Etnologia [MNE]. A substituição da então Secretária de Estado da Cultura Maria Teresa Pinto Gouveia, no inicio de 1990, com o afastamento de António Garcia Lamas, travaram o processo de desmantelamento do Museu, preservando o mesmo a sua disposição original e acervo mas perdendo o seu carácter autónomo, ficando na dependência do MNE como Centro Regional de Artes Tradicionais.

Em 1997 o MAP surgiu novamente enquanto tal, quebrando a ligação com o MNE. Contudo, vários anos de suborçamentação e negligência por parte desse último, somados a muitos outros por parte das tutelas e à frágil construção herdada da Exposição do Mundo Português, contribuíram para uma situação de acentuada degradação do espaço, acervo e serviços. Quando as obras de requalificação avançaram em 1999, ao abrigo do Quadro Comunitário de Apoio para Portugal, já o MAP perdera clara preponderância no panorama museológico nacional e da cidade de Lisboa, sendo das instituições que registava um dos mais baixos números de visitantes.

A decisão de encerramento em 2006, e apesar da requalificação em curso, enquadrou não mais do que um desfecho expectável na lógica de desinteresse reproduzida pelo poder político, durante as três décadas anteriores.
Situar essa decisão implica enquadrar as profundas transformações culturais e políticas ocorridas na sociedade portuguesa entre 1948 e 2006. As diferentes relações produzidas entre o entendimento político, a sociedade e os mecanismos de afirmação do discurso dominante.

Se entre 1948 e 1974 a exaltação da ruralidade configurava a promoção de uma conduta cívica concreta – que se pretendia instituída –, caracterizada pela simplicidade, desprendimento em relação à orientação governativa do país, pautada pela vivência humilde num contexto de privação mas realizada nas tradições e manifestações culturais, depois de 1974 o sentido pretendido representava um entendimento totalmente diferente. Procurando estimular a participação dos cidadãos na definição da orientação política do país e mobilizar a população para projectos de desenvolvimento social e humano – valores reforçados com a inclusão de Portugal na Comunidade Económica Europeia em 1986.

Nesse conflito valorativo residiu grande parte do entendimento determinado pelo Poder político do pós-25 de Abril em relação ao MAP e à mensagem nele entrevista, marcando os pressupostos relacionais e enquadrando o processo de alteração do regime político e social em marcha. A ressignificação de novas palavras, entendimentos e percepções culturais numa lógica de ruptura, determinaram uma projecção simbólica hostilizante por parte dos mecanismos e canais de poder em relação ao MAP, cristalizando-o na sua matriz fundadora e inviabilizando qualquer dissociação do projecto cultural do Estado Novo.

Sem possibilidades de renovação, o Museu adquiriu um sentido anacrónico e de imobilismo, conotado de uma forma surda com um passado do qual nunca se conseguiu libertar em muitos sectores da cultura nacional, sendo notório a clara ausência de referências – comparativamente com o período anterior – na vida pública e cultural nacionais.

Produto de uma época determinada, o MAP consubstanciou de uma forma provavelmente única em Portugal as pulsões que habitam os museus, relacionadas com a apropriação política – no sentido ideológico – do património e os mecanismos associados à enfatização ou supressão de discursos dominantes.

Se é certo que resultou de uma leitura própria e ideologicamente condicionada relativamente ao entendimento de cultura e arte popular, o mesmo fenómeno foi reproduzido noutros moldes e por outros meios nos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril, em que o contexto revolucionário e a hegemonia dos movimentos de esquerda conferiram uma outra leitura à cultura popular, enquadrando-a e redefinindo-a de acordo com as suas tendências ideológicas.

Invocar “Política Cultural do Ministério”, sem que tivesse existido uma sustentação fundamentada e resultante, efectivamente, de um projecto cultural estruturado e coerente – as motivações revelaram-se sempre decorrentes do entendimento pessoal da então Ministra da Cultura em relação ao Museu -, em nada resulta diferente do sentido político fundador expresso por António Ferro no dia da sua inauguração: “Este museu que tenho hoje a alegria de inaugurar, (...) é a exemplificação viva, indiscutível de tudo quanto tenho desejado provar com a minha acção, com as minhas palavras”.

A diferença reside na intencionalidade associada: sendo que em 1948 se pretendia fixar e exaltar uma política e uma forma particular de ver o mundo, em 2006 pretendeu-se impor um sentido de esquecimento a qualquer conotação ou possibilidade evocativa de uma memória, mesmo quando não existiam perigos inerentes e quando as pessoas se reviam essencialmente nas manifestações artísticas presentes no museu, representativas de um mundo praticamente desaparecido mas estruturante da cultura nacional.

A decisão de encerramento do museu traduz uma forma particular de lidar com a história recente de Portugal por alguns sectores do Poder político dominante e da sociedade portuguesa, impondo o seu discurso e leitura de uma forma assíncrona, assente nos símbolos que valida e que revê nesse entendimento, privando o país de fontes e manifestações que permitam um diálogo, nesse âmbito, aberto e passível de validação.

Luís Raposo Pereira

Luís Filipe Raposo Pereira é autor de Museu de Arte Popular: Memórias de Poder, dissertação apresentada no Curso de Mestrado em Museologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2008

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